quarta-feira, 27 de julho de 2011

As crianças e a nossa imprevisibilidade

Há nas crianças uma irresistível capacidade de desviar do óbvio. De seguir raciocínios e acompanhar conversas e explicações, e quando menos se espera, surpreender os adultos com uma conclusão, uma observação, um comentário, por vezes apenas uma exclamação, vocalizada no calor da experiência pueril, que simplesmente sai fora de todo o esquadrinhamento engendrado pelo discurso que se propôs inicialmente. Esses dias deparei-me com uma dessas situações. Estávamos, eu e minha namorada, com uma menina amiga nossa, quase uma mocinha (embora o diminutivo não lhe seja muito apreciado), andando de carro na Avenida Tancredo Neves, em São Paulo. A menina olha para fora do carro e avista a placa com o nome da rua, imediatamente dizendo-o em voz alta e com um tom instrospectivo: "Tancredo Neves...". Minha namorada em seguida comentou: "Foi um presidente do Brasil, que morreu..." sendo logo interrompida pela exclamação: "Ele tem muita neve, né!", vinda vocês podem imaginar de quem. Eu não pude me conter. "Com certeza ele 'ter muita neve' é bem mais interessante do que ter sido presidente do Brasil!", disse.

Revivendo aquele momento gostoso, fica cada vez mais clara a impressão de que além da associação "literal" - se é que foi isso - aparentemente feita, alguma coisa misteriosa se escondia naquelas palavras. Algo impenetrável a nós, adultos. Não tratava-se de uma resposta ingênua, mas, sinto, de um desprendimento de respostas prontas, daquela ideia de que a tudo acompanha uma explicação. Não pode haver conhecimento sério extraído do simples brincar com as palavras. Isso me inquieta, pois vejo aí, por detrás dos protocolos, uma atitude muito cínica. Que cargas d´água obriga a pessoa que escuta certa informação ou observa algum fato a intuir determinadas conclusões ditas óbvias? Por que motivo, e mais, com que certeza tratam-se de conclusões óbvias? Onde está a obviedade, ou melhor, para quem? Não posso deixar de sentir um certo revés nas circunstâncias quando deparo-me novamente com a exclamação "ele tem muita neve" e noto o quão concretamente óbvio é esta conclusão - afinal, nesse caso, o sobrenome surgiu com o intuito de denotar de uma qualidade do sujeito, tradição no século XVIII - muito além da "obviedade" padrão. E, ainda assim, a criança a diz sem soar redundante, ou talvez brincando com a própria redundância, aqui despida do preconceito com o qual costumeiramente é tratada.

Por fim, creio que esses eventos também nos mostram o quanto estamos abertos à própria imprevisibilidade da vida e das coisas. De alguma forma, o hábito de coadunar objetos a predicados - e a prazerosa sensação de poder que este hábito produz - denuncia nossa inflexibilidade frente ao auto-personagem que criamos. Um colosso irredutível, capaz de triunfar sob a dúvida em qualquer combate sem levar nem um arranhão. Uma miragem, daquilo que nunca fomos, nem seremos, simplesmente porque não nos deixamos ser o que, dúvidas a parte, somos: seres imprevisíveis. E daí precisamos de crianças para nos lembrar disso. Afinal, o que havia de mais interessante em Tancredo Neves talvez fosse mesmo a peculiaridade de seu sobrenome. A despeito do fato de que ele não trazia - ao menos costumeiramente - neve consigo. Mas que importa que não tivesse neve? Ele tampouco foi presidente do Brasil mesmo!